Les Larmes amères de Petra von Kant, de Rainer Werner Fassbinder
o turco que te envolvia contrastava fluentemente com a pele salgada de sol e o teu perfil era quase distinto enquanto o gato Visconti não te saltou às pernas e te despiu involuntariamente. não foi ele quem desfrutou da visão dionisíaca, mas eu que me ia cortando enquanto descascava as cebolas, os tomates e os pimentos. não valia a pena apanhar o toalhão porque a nudez era imaculada, dizias tu. era arrebatadora, pensava eu. porém já não havia brilho nas palavras que nos saíam dos lábios. eram baças, embaraços, escolhos no nosso caminho. restavam as miadelas de cio da gata Duras para dar alguma cor ao ambiente. voltei por isso a aplicar-me na preparação dos legumes, enquanto balançavas pacatamente na rocking chair, fumando a cigarrilha estafada e um whisky velho. meti a panela ao lume, esperei que a água fervesse e depois, também pacatamente, peguei nela para a despejar em cima dos teus longos cabelos pretos.
"As mulheres eram igualmente notáveis na perfeição dos trabalhos que confeccionavam. Teciam entretecendo fios nos belos tecidos que fazem representar formas tão vivas que toda a gente ficava a conhecer perfeitamente todos os enredos que queriam ilustrar. Foi assim que Filomela se voltou também para o tear. Tinha um motivo muito especial para dar a conhecer com clareza a sua história. Com um padecimento infinito e uma habilidade inexcedível conseguiu fazer uma tapeçaria maravilhosa, onde expusera o relato completo dos seus males. Uma vez terminada a obra, entregou-a à velhota que a servia, dando-lhe a entender que se destinava à rainha.
Orgulhosa por ser portadora de tão bela dádiva, levou-a a Procne, que, nessa altura, ainda usava luto pela irmã, luto esse que igualmente lhe invadia a alma por completo. Desenrolou a teia e lá encontrou Filomela e Tereu, também inconfundíveis. Horrorizada interpretou a cena - para ela o desenho da tapeçaria era tão inteligível como a letra o é para nós."
Mito de Filomela
Filomela e Procne
Nota: A pintura é "A rendilheira" de Vermeer, 1664
Orphée et Eurydice é uma obra poderosa, excessiva, habitada por vagas de humor. Fascinada pelo corpo até nas suas manifestações mais íntimas e secretas, a coreógrafa Marie Chouinard concebeu uma “dança exploratória” que ousa o desregramento do corpo, a desmesura, executada por intérpretes que nisso se empenham totalmente. Esta dança demoníaca expõe as origens viscerais da criação. Sopros, gritos, vogais, consoantes desenraízam-se do orgânico como uma infra-língua extraída do âmago do corpo. Não é um mito sobre o amor. Não se procure aqui uma só Eurídice, um só Orfeu; eles são múltiplos, no número e no género.
O excerto de vídeo que se encontra no site de TNSJ não me tinha atraído muito. Apenas o texto.
Mas valeu a pena ter arriscado! A orgia criativa não é de todo asséptica como parece. E assistir a este espectáculo é quase uma experiência erótica, de celebração do corpo e da poesia.
as escaras podem cobrir-me o corpo o sangue sair em golfadas pela boca as lâminas cortarem-me os pés descalços que eu continuarei paulatinamente o caminho carregando palavras como se foram pedras, em silêncio, num fraseado de gestos seculares coreografando a vida, com velas e incenso, com ramos de oliveira e uvas tintas no altar de catedrais góticas ou de dólmenes graníticos porque todos me servem de palco a uma missa crioula seja lá para que deus fôr. a minha religião são os esqueletos putrefactos, feitos de lágrimas insolventes na memória e não tenho arrependimento no horizonte porque a culpa não me maculou o parto.
atirado o punhado de terra sobre o esquife, continuo descalça o meu caminho solitário.
talvez amanhã ou ali naquela esquina a luz se esquive mas o mar continuará a seguir o movimento da lua porque será apenas um olhar a menos sobre o mundo.