A janela rasga a paisagem de lés a lés. Passseio os olhos num horizonte perdido até encontrar o sabor da água que envolvia o teu corpo.
Não. Enganei-me.
Não é por aí que devo ir, que os meus olhos estão cansados.
A cegueira traiu-me os sentidos, por isso ergo as mãos para o chão, enfio os dedos na terra, indiferente ao estrume que se entranha no coração. Quero esfregar a pele nas arestas do granito para regar de sangue a tua cara de virgem. Não me venhas dizer que não são horas ainda. O relógio parou há uma eternidade sem que tenhas tido sequer a preocupação de mudar as cortinas. Por isso agora sou eu quem grita com os galos, de manhã, para te dizer basta.
É rasteira esta casa apodrecida onde me espreguiço pelas paredes sujas, planto cardos, invento rosas e bebo o leite que chupei das tuas mamas. A cadeira está no alpendre. O guarda-sol na varanda. O colchão está no sotão e a cama na cave. Mas é no fogão que o cheiro a sexo transborada das panelas, à mistura com azeite.
Ouve cá: não queimes esse corpo adelgaçado, que seria difícil encontrar outro assim.
É aqui que vou ficar até que o mijo me escorra pelas pernas, até que os dentes caiam de podres, até que o reumatismo me impeça de andar e os olhos se fechem de vez. Tu assistirás apenas à degradação do corpo, porque aquilo que tenho para contar atingirá o gume da lucidez que vai estilhaçar até os ouvidos dos animais. Rejeito a puta de vida ligada a tubos e máquinas que a medicina nos oferece e és tu quem vai cumprir o gesto fatal, neste lugar de ninguém.
Depois , algum pescador de pérolas acenderá uma fogueira na praia e cantará até que as cinzas voem com as gaivotas rasando as ondas fuliculares.
13 comentários:
fiquei sem fôlego.
e sem palavras.
volto. quando recuperar.
beijo.
Forte... e belo, sobejamente belo.
Beijo, Ângela
deste a este texto um título que só no seu sinónimo o remeteria para nota de rodapé ou acréscimo, dado que todo ele merece ser a figura principal da peça e arrumar os outros na audiência. é como se o título fosse cada um de nós, cá em baixo, erguéssemos os olhos só para te ler. é esse o poder do texto. e merece um aplauso :) um beijo especial, ângela.
tas a ver?
ha coisas que sao tocadas a arco
com mel e jeito.
a esses nao lhe cairá nada:))))) serão velhos mas linderrimos.
ai ai angela
que se foda o corpo
se use até doer :))))))
ps: eu la vou tendo
stockhausen numa mao
e os ramones na outra :)
os pescadores de pérolas raramente estilhaçam as ditas. a não ser por mero e lamentável engano...
.
este texto de "lamento" é uma pérola.
brilhante. dentro da "capa" das letras soltas que embalam a lucidez.
belo o epitáfio.
bom dia A.
OBRIGADA, Isabel
por chamares as coisas pelos nomes:
"epitáfio"
e por falares na "capa"
porque é SÓ isso mesmo.
beijo
(agradeço as palavras de todos, claro, mas tinha que salientar estas)
:) a tua linguagem semiótica....
beijo.
.piano.
poderoso e exemplar, prende e nos agarra até ao fim da leitura!
se gostei?
adorei!!
um beijinho imenso
a palavra não é minha, mas este texto também merece uma g.a.i.t.a!
:)
boa tarde, ângelinha. biju.
já li e reli. e continuo pasmada.
não sei se ponha o relógio a funcionar ou se desligue os tubos das máquinas.
se não parecesse mal plagiava a alice. assim, digo-te que gosto muito de te ler na versão mais crua.
um beijo Ângela.
G.A.I.T.A......:)))))))
enorme sorriso.
.
a "agarrar" o gume que pode ser o gesto salvífico.
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sacríloga a palavra depois da leitura
o espanto do bezerro sagrado que se espanta sob a tua pira ou que aspira as cinzas que se espslham na areia
detenho.me na palavra
e
deixo.te
.
um beijo
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