transformou a sua vida numa pauta atonal. fechou portas e janelas e deixou morrer as plantas antes viçosas de libido. a luz que passava estreita nas frinchas das paredes levantava o pó pelas cortinas de brocado e o resultado era uma imensa tela esfaqueada que lhe cegava os olhos durante o dia.
à noite todos os gatos eram pardos e por isso os candeeiros iluminavam apenas os passos que dava, quando os dava, ou o cigarro amadurecido no canto da boca.
de longe a longe, pegava cuidadosamente no braço do gira-discos, e bebia um gole de cognac, enquanto a música se espalhava, cansada, pelos cantos da casa. o frenesim só palpitava nos livros desleixadamente amontoados pelo chão e pela mesa, misturados com cadernos rabiscados de anotações minuciosas sobre cada autor que relia com este novo olhar de velha muito velha. o tempo era inexorável e toda a rapidez era pouca para conseguir transformar uma vida de leitora diletante numa figura durasiana. não havia ninguém para lhe perguntar qual o propósito desta tarefa tão ridiculamente prometeica, mas se houvesse creio que não teria resposta, ou então seria convidado a sentar-se, em silêncio total, no sofá coçado que estava sempre na penumbra.
no bairro corria o boato de que ela enlouquecera definitivamente e pouco se preocupavam em verificar se os poucos movimentos mais ou menos quotidianos marcavam o ponto à hora certa.
foi assim que o padeiro, ao fim de uma semana, estranhou a constante sobra de pão e depois de muito pensar se lembrou de ir bater à porta da D. Virgínia.
efectuados todos os procedimentos habituais nestas circunstâncias não se conseguiu apurar a causa de morte e rapidamente foi esquecida porque não se lhe conheciam relações pessoais.
apenas eu sei que a D. Virgínia desistiu, simplesmente, de respirar, porque os seus olhos a traíram, ainda longe do fim da tarefa de releitura dos livros da sua vida.
segunda-feira, 6 de abril de 2009
os livros de uma vida
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13 comentários:
abençoada febre que te leva a escrever
assim
( amiga da onça ,como só eu!!!! )
.
um beijo ,miúda:)))))))))))))
Uma tarefa infindável, ao contrário da vida.
Beijos ângela
nunca tinha questionado se seria possível morrer a ler, e creio que depois do que aqui escreveste, me parece uma forma completa :) beijo
regressei
tal como a Dª Virgínia
por necessidade
absoluta
de re ler
.te
.
um beijo provocatório
do sul.....beijo.
emprestas.me os teus lápis de cor?
vá!
não sejas mazinha ,please:)))))))))
.
um beijo
também gosto de cognac e de livros
e de música e de duras....
beijo Â.
Já li várias vezes e gosto sempre... quando vou comentar, fico sem net... estou no meio do monte, Ângela, no coração do Alto Minho.
Beijo
E o maior livro é a D.ª Virgínia. Terá-lo-à levado consigo e, quiçá, só tu o tenhas lido com a tua sensibilidade para além do comum.
Beijinhos.
Boa Páscoa.
Quero agradecer a um/a anónimo/a que teve a gentileza de me chamar a atenção para duas gralhas...uma delas vergonhosamente parecia um erro. Pediu-me que não publicasse e respeito, mas faço questão de o assinalar aqui. OBRIGADA.
Deixou que o musgo das palavras a adormecesse.
Tão verdadeiro e pungente este teu contar.
Bj
Informo que está sob vigilância atenta do ROQUERHUNTER.
não parto os lápis ,mas se os aparar até aos cotos ,zangas.te comigo?
( eu dou.te um cromo p'rá troca ,tá bem? )
.
um beijo
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