domingo, 31 de outubro de 2010
o elogio do sorriso
é o sorriso maduro que demora
a surgir no rosto cansado
de quem passou a metade da vida
aquele sorriso de quem sabe
que a qualquer momento
poderá congelar
numa face gélida onde
o sangue já não circula
é o sorriso de quem sabe
que as palavras em demasia
provocam congestões
fatais ou diarreias intermináveis
é o sorriso de quem caminha devagar
contra a corrente do estrelato
pós-moderno defensor
da eterna juventude eterna.
é aquele sorriso tranquilo
que mostramos ao espelho
pela manhã no gesto salutar
de auto derrisão e nos salva
da mediana mediocridade deste tempo
tão cosmeticamente esfoliado.
sábado, 30 de outubro de 2010
carpe diem... dit-on
(para a ISABEL BARROS, com o carinho de sempre)
Nada. Ninguém. Nenhures.
Apenas um grito abortado, antes de lembrar que a vida não pode andar distraída. Ou sim. Porque o sorriso de uma criança é maior que o deserto, uma planta regada com afinco vale uma viagem à volta do mundo, o abraço apertado de um amigo é o berço perfeito de qualquer lágrima.
O processo de limpeza do texto dramático é o exemplo perfeito da joeira em que transformei os dias depois da curva que me esperava antes do rumo seguro para o fogo. Despojada/mente.
Caminho descalço. Nenhures.
Ninguém.
Nada.
in memoriam João Paulo Seara Cardoso
Não há palavras para dizer mais esta perda...........................................................................................................................................................................................
talvez Beckett soubesse dizê-las..........
sábado, 23 de outubro de 2010
terça-feira, 19 de outubro de 2010
história de uma epifania
Era uma vez uma palavra que andava de boca em boca, de mão em mão, como se fosse essa a única forma de ganhar o pão nosso de cada dia. Ele eram poetas e amantes, homens e mulheres, cultos e ignorantes, adultos e crianças... não havia criatura neste mundo que não a usasse e dela abusasse com a ligeireza de um gole de água que serve para enganar a sede.
E a palavra cansada, mas submissa nada fazia, nada dizia que pusesse termo a tal desperdício. Resistiu ao tempo, a revoluções, resistiu a modas e a retóricas, resistiu até a concursos televisivos que a trocavam por milhões. Sempre a mesma: os mesmos grafemas, os mesmos fonemas, a mesma prosódia.
Um dia deu-se conta de que havia um homem, de sua profissão escrevinhador, que tinha deixado de a usar sob forma escrita ou falada, que a tinha lapidarmente rasurado do seu dicionário. Sentiu um calafrio, olhou-se ao espelho (coisa inaudita para uma palavra) e viu um amontoado de ossos, encavalitados uns nos outros, que nem sequer permitiam desvendar o esqueleto. À força de tanto ser repetida ela ficara vazia. Um monte de ruído apenas. Foi assim que percebeu a razão do escrevinhador que, embora continuasse escrevendo, definhava a olhos vistos e fazia um esforço desumano para arrastar a caneta pela folha de papel e continuar a contar histórias para leitores que nem sabia se existiam.
Então, a palavra, que quase já não o era, fez das tripas coração para chegar ao papel e exibir a sua última magia: escreveu-se sobre a folha, pela mão do escrevinhador que, já esquecido destas traições das palavras, se matou ali mesmo, cobrindo-a com o seu sangue para que ninguém viesse a descobrir o sentido de tal gesto.
O enterro de ambos foi marcado para o dia seguinte, à hora do sol poente. E toda a gente continuou alegremente a repetir a palavra que já não queria dizer nada.
domingo, 17 de outubro de 2010
sexta-feira, 8 de outubro de 2010
baixa costura
Birul Sinari-Adi
Vergonhosamente
Esqueci-me de alinhavar
O poema em cima do manequimPor isso deixei uma metáfora
Completamente enviesada
Descaída sobre o peito
As anáforas descasadas
Umas das outras
Já não o eram
E a bainha da hipálage
Ficou uns centímetros abaixo
Do joelho.
Vou portanto descoser tudo
Deixar os alfinetes em cima da mesa
E atirar-me da janela.
Amanhã vem uma costureira nova.
terça-feira, 5 de outubro de 2010
diálogos diversos 1
(Casal de quarentões, sexta-feira à noite, ao balcão sebento de napa, num bar periférico de uma cidade.)
Ele - Tem Facebook?
Ela - Não.
Ele - H5?
Ela - Não.
Ele - Msn?
Ela - Também não.
Ele - Estranho...
Ela - Estranho é você fazer-me esse questionário todo sem me conhecer de lado nenhum.
Ele - Justamente, o que eu queria era conhecê-la.
Ela- Antigamente perguntava-se as horas, pedia-se lume....
Ele - Não me diga que é saudosista!
Ela - Não. Apenas constato.
Ele - Então diga-me tem I Pod?
Ela- Não.
Ele - Telemóvel?
Ela - Infelizmente sim.
Ele - Quer dizer que preferia não ter.
Ela - Exactamente.
Ele - E também tem computador?
Ela - Também infelizmente. Mas só no trabalho.
Ele - Não tem em casa?
Ela - Claro que não.
Ele - Você não parece deste mundo!
Ela - Pode beliscar-me e verá que sou. Apenas não correspondo à sua visão "deste mundo". Gosto de coisas diferentes.
Ele - E fibra óptica?
Ela - Não tenho net, portanto não preciso. Certo?
Ele - E televisão?
Ela - Só uma coisita pequenina a preto e branco.
Ele- Não consigo imaginar a sua vida.
Ela - Ainda bem. Porque eu imagino a sua e acho uma sensaboria. Nem percebo o que está aqui a fazer...
Ele- Pois... houve uma avaria na minha zona e decidi vir beber um copo, para que o tempo não custe tanto a passar. E você... ah... com o se chama?
Ela - (Sorrindo) Vim comprar tabaco e aproveitei para matar a sede, também. Conceição.
Ele- Pedro. Prazer.
Ela - Coitado...
Ele - Como?... (Entre espantado e furioso)
Ela - Desculpe o meu humor... estava a pensar no D. Pedro, que diria ele... Bem, mas fiquei exausta com a conversa. Vou-me embora. Que o seu coração fique em paz. (Sorrindo maliciosa)
Ele - Fiquei com uma curiosidade.
Ela - Diga.
Ele - Disse que gostava de coisas diferentes. Posso saber o que faz nos tempos livres?
Ela - Tenho a minha colecção de bonecas e mudo-lhes a roupa todos os dias. Estou com pressa, que ainda me faltam 1383. Adeus. (Saindo airosa.)
Ele- Adeus. (Bebendo de um trago o whisky velho)
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
(d)os amigos
Alain Boccard
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
construímos um lugar de silêncio.
De paixão.
Herberto Hélder, Lugar, 1962
Subscrever:
Mensagens (Atom)