Era uma vez uma palavra que andava de boca em boca, de mão em mão, como se fosse essa a única forma de ganhar o pão nosso de cada dia. Ele eram poetas e amantes, homens e mulheres, cultos e ignorantes, adultos e crianças... não havia criatura neste mundo que não a usasse e dela abusasse com a ligeireza de um gole de água que serve para enganar a sede.
E a palavra cansada, mas submissa nada fazia, nada dizia que pusesse termo a tal desperdício. Resistiu ao tempo, a revoluções, resistiu a modas e a retóricas, resistiu até a concursos televisivos que a trocavam por milhões. Sempre a mesma: os mesmos grafemas, os mesmos fonemas, a mesma prosódia.
Um dia deu-se conta de que havia um homem, de sua profissão escrevinhador, que tinha deixado de a usar sob forma escrita ou falada, que a tinha lapidarmente rasurado do seu dicionário. Sentiu um calafrio, olhou-se ao espelho (coisa inaudita para uma palavra) e viu um amontoado de ossos, encavalitados uns nos outros, que nem sequer permitiam desvendar o esqueleto. À força de tanto ser repetida ela ficara vazia. Um monte de ruído apenas. Foi assim que percebeu a razão do escrevinhador que, embora continuasse escrevendo, definhava a olhos vistos e fazia um esforço desumano para arrastar a caneta pela folha de papel e continuar a contar histórias para leitores que nem sabia se existiam.
Então, a palavra, que quase já não o era, fez das tripas coração para chegar ao papel e exibir a sua última magia: escreveu-se sobre a folha, pela mão do escrevinhador que, já esquecido destas traições das palavras, se matou ali mesmo, cobrindo-a com o seu sangue para que ninguém viesse a descobrir o sentido de tal gesto.
O enterro de ambos foi marcado para o dia seguinte, à hora do sol poente. E toda a gente continuou alegremente a repetir a palavra que já não queria dizer nada.
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