quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

optimismo empacotado


Foto de Tiago Pereira


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É assim tão inevitável

Falar do tempo e da morte

E da loiça para o jantar?

E dos copos que combinam

com a baixela de Sèvres

e dos serões da Pompadour?

É assim tão fundamental

Expôr a última edição da Bíblia

Lado a lado com um Saramago

Em caixa prateada, afinal

Maldito falhado?

Os postalinhos de última hora

As prendinhas topo de gama

As toilettes brilhantíssimas

O verniz das unhas e do gesto

O bâton que vai ficar

No colarinho dos amantes.

Sem esquecer o Moët & Chandon

E os chapelinhos do Mickey...

Tão felizes que nós somos

Tantos amigos que temos

Tanta dança inebriante

Tanto optimismo empacotado!

Ah... e um depósito numa ONG

Para sossegarmos a consciência.

Coitados dos que dormem na rua

Nós temos imensa pena...




domingo, 20 de dezembro de 2009

avec le temps


Fotografia de Clarence Laughlin, 1941


lenta hesitação entre

teclas pesadas frias

e o calor da pena ou

da caneta vagarosa

desenhando letras

no mata-borrão

que se juntam em sílabas

palavras esvoaçantes

lançadas à sorte

de marinheiros do passado

e imigrantes do presente.

(a noite fazia gelo e a conversa

aquecia com a erva misturada)

outros olhos a falarem de cá

os mesmos a falarem de lá

uma corrente de vozes atentas

dispersas entre Berlim e o Porto

Veneza agonizante de espelhos

edipianos de uma culpa

informe. o artista incendiou

a própria casa apenas para

poderes contar-me a história

e eu vagueio em amesterdão

ao som de um saxofone

porque me repugnam

os cetins e toda a sorte

de beleza que paira nos céus.

os meus sonhos

têm raízes nas fossas de

Paris e nas peixeiras de Cesário

a minha caneta escreve com sangue

das feridas do Kosovo

e as minhas insónias

são delimitadas com arame

farpado a cheirar a judeus:

preciso, ainda hoje,

de me inclinar sobre

os esqueletos putrefactos

para ter a certeza de

que não vim ao engano

passear airosa sobre um jardim

édénico inventado

antes do Verbo.

eu não consigo ver rosas

onde a lama escorrega

impunemente.




quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

willkommen


os sorrisos maquilhados
saíram à rua
com uma promoção
natalícia de humanidade
recauchutada
e as pessoas abotoam
a solidariedade
como se fosse uma costura
desalinhavada que
a aprendiza se esqueceu de chulear.
mas o alfaiate tem sempre
a tesoura à mão
de semear para cortar
um fato novo
vincado a vapor de hipocrisia
pronto a estrear
na passagem de ano.
dançam os casais
a fingir que fodem regularmente
e o champagne escorrega
pelas varandas misturado
com caviar e chuva de estrelas
numa orgia digna de
qualquer comunidade
vanguardista
de viragem de século
sempre mais propícia
a desvarios e manifestações
rubicundas que sublinham
a inquietude que é
o salto centenário
de um século para outro
na cronologia rigorosa
em que nos engarrafaram.

Assim, entre um nascimento
sagrado e uma partouze profana
as almas tranquilizam
anualmente as suas
consciências de plástico.

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sábado, 12 de dezembro de 2009

outra espécie de rosa


Fotografia de Clarence Laughlin, 1938





(para o jardim do costume)

É inverno, sim. Mas imagina que é fevereiro, creio que foi por aí o nosso Natal. Falaste-me de Duras, em Paris, ou então de Camille Claudel: o mais do que suficiente para que daí para aqui se desenhasse uma “pont des arts”, de que conhecemos as pedras mais escondidas, que permitiu a construção manual deste pedaço de terra que habitamos há um tempo infinito. Sem princípio, nem fim. Atemporal. Sem relógios, nem balanças. É um pedaço habitado, mas sem paredes, uma casa do avesso para que possamos usufruir da linha do horizonte com a mesma leveza com que Rilke atravessou Praga em direcção a Llorca. Às cinco da tarde, tomamos um chá verde que secou nas planícies longínquas de uma Indochina mítica e reescrevemos a miséria das mulheres curvadas, no chão que o diabo amassou.

[Para trás ficaram os sorrisos anafados, os sainetes de salão, a convivência janota.]

As palavras também podem servir-se à mesa, com as ervilhas descascadas por Gabriela Pruniloba, no pátio da casa em Herbais. Sejam sementes ou raízes, elas erotizam na folha o sexo dos legentes atentos. Alheias a tempos cronológicos tão aleatórios como as badaladas do sino da minha aldeia. Os dias são pautados pelo paradoxo da transparência e distanciamento de Yourcenar sentada à porta do seu exílio, em Mount Desert Island, conversando com Zenão sobre a liberdade que tu transpiras em cada amostra de texto que alinhavas ininterruptamente como o fio de Ariadne.

E o fim alguém terá que escrever por nós. Alguém que sobreviva para além deste tempo.







quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

cobertura


Fotografia de Atget, 1925

cavo esta página
como se fosse
a sepultura
onde me abrigarei
do tempo.


cada palavra
que me encobre
é uma conquista
ao embuste da verdade
que dizem suprema.


quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

le paradoxe de l'écrivain



MARGUERITE YOURCENAR


terça-feira, 8 de dezembro de 2009

parabéns, SARA!


20 anos depois...


Tu me foste deusa e lágrima, me implodiste a alma e me adubaste o sorriso. Menina mulher, senhora de um império de afectos, artesã de imagens, bordadeira de palavras e tocadora de harpa. Inventora de sonoridades nas caves da cidade que filmaste de granito. E te é berço d’ouro tanto manoelino quanto junqueiriano. A mim ficou-me o hábito de te segurar a mão, como quem te puxa para a vida, dias e dias de chuva gelada, num percurso penoso de uma casa vazia para um hospital onde só tu existias. Me existias. Me não podias abandonar, ainda que eu tivesse que oferecer-te a minha vida. Era um milagre, o que eu queria. Mas foi uma vontade partilhada sem palavras que me ajudou a trazer-te para o lado de cá.

E agora, é apenas um hábito, é apenas uma maneira de dizer que te amo. Porque tu caminhas como quem sabe que o chão é escorregadio, que as esquinas podem atraiçoar, que o percurso não é a direito. E o teu sorriso largo espalha a doçura de quem ama os velhos e as crianças, os sem abrigo e os esfomeados, os livros e os gatos. Caminhas fazendo o caminho. Teu: com quem tu amas e vive em ti. Sobrevive em ti.

Por isso, hoje, em oração mais uma vez, te lego o testemunho da vida.




Po





domingo, 6 de dezembro de 2009

ressaca


Fotografia de Julia Margaret Cameron, 1867

1.
cada dia que passa
retiro uma palavra
do meu léxico
ideal.
2.
o que eu escrevo
serve apenas
para fingir
que há um mundo
à minha volta.

3.
snifo as palavras
com a cegueira de
quem apenas
sobrevive.


4.
por muitos aditivos
que me sustenham
nenhum tem o poder
de me reduzir
a um bilhete de comboio
que rasgaste numa estação
do Oriente.


FEMINISTIZA_TE

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