quarta-feira, 30 de dezembro de 2009
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
optimismo empacotado
Foto de Tiago Pereira
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É assim tão inevitável
Falar do tempo e da morte
E da loiça para o jantar?
E dos copos que combinam
com a baixela de Sèvres
e dos serões da Pompadour?
É assim tão fundamental
Expôr a última edição da Bíblia
Lado a lado com um Saramago
Em caixa prateada, afinal
Maldito falhado?
Os postalinhos de última hora
As prendinhas topo de gama
As toilettes brilhantíssimas
O verniz das unhas e do gesto
O bâton que vai ficar
No colarinho dos amantes.
Sem esquecer o Moët & Chandon
E os chapelinhos do Mickey...
Tão felizes que nós somos
Tantos amigos que temos
Tanta dança inebriante
Tanto optimismo empacotado!
Ah... e um depósito numa ONG
Para sossegarmos a consciência.
Coitados dos que dormem na rua
Nós temos imensa pena...
domingo, 20 de dezembro de 2009
avec le temps
lenta hesitação entre
teclas pesadas frias
e o calor da pena ou
da caneta vagarosa
desenhando letras
no mata-borrão
que se juntam em sílabas
palavras esvoaçantes
lançadas à sorte
de marinheiros do passado
e imigrantes do presente.
(a noite fazia gelo e a conversa
aquecia com a erva misturada)
outros olhos a falarem de cá
os mesmos a falarem de lá
uma corrente de vozes atentas
dispersas entre Berlim e o Porto
Veneza agonizante de espelhos
edipianos de uma culpa
informe. o artista incendiou
a própria casa apenas para
poderes contar-me a história
e eu vagueio em amesterdão
ao som de um saxofone
porque me repugnam
os cetins e toda a sorte
de beleza que paira nos céus.
os meus sonhos
têm raízes nas fossas de
Paris e nas peixeiras de Cesário
a minha caneta escreve com sangue
das feridas do Kosovo
e as minhas insónias
são delimitadas com arame
farpado a cheirar a judeus:
preciso, ainda hoje,
de me inclinar sobre
os esqueletos putrefactos
para ter a certeza de
que não vim ao engano
passear airosa sobre um jardim
édénico inventado
antes do Verbo.
eu não consigo ver rosas
onde a lama escorrega
impunemente.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
willkommen
os sorrisos maquilhados
saíram à rua
com uma promoção
natalícia de humanidade
recauchutada
e as pessoas abotoam
a solidariedade
como se fosse uma costura
desalinhavada que
a aprendiza se esqueceu de chulear.
mas o alfaiate tem sempre
a tesoura à mão
de semear para cortar
um fato novo
vincado a vapor de hipocrisia
pronto a estrear
na passagem de ano.
dançam os casais
a fingir que fodem regularmente
e o champagne escorrega
pelas varandas misturado
com caviar e chuva de estrelas
numa orgia digna de
qualquer comunidade
vanguardista
de viragem de século
sempre mais propícia
a desvarios e manifestações
rubicundas que sublinham
a inquietude que é
o salto centenário
de um século para outro
na cronologia rigorosa
em que nos engarrafaram.
Assim, entre um nascimento
sagrado e uma partouze profana
as almas tranquilizam
anualmente as suas
consciências de plástico.
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sábado, 12 de dezembro de 2009
outra espécie de rosa
Fotografia de Clarence Laughlin, 1938
É inverno, sim. Mas imagina que é fevereiro, creio que foi por aí o nosso Natal. Falaste-me de Duras, em Paris, ou então de Camille Claudel: o mais do que suficiente para que daí para aqui se desenhasse uma “pont des arts”, de que conhecemos as pedras mais escondidas, que permitiu a construção manual deste pedaço de terra que habitamos há um tempo infinito. Sem princípio, nem fim. Atemporal. Sem relógios, nem balanças. É um pedaço habitado, mas sem paredes, uma casa do avesso para que possamos usufruir da linha do horizonte com a mesma leveza com que Rilke atravessou Praga em direcção a Llorca. Às cinco da tarde, tomamos um chá verde que secou nas planícies longínquas de uma Indochina mítica e reescrevemos a miséria das mulheres curvadas, no chão que o diabo amassou.
[Para trás ficaram os sorrisos anafados, os sainetes de salão, a convivência janota.]
As palavras também podem servir-se à mesa, com as ervilhas descascadas por Gabriela Pruniloba, no pátio da casa em Herbais. Sejam sementes ou raízes, elas erotizam na folha o sexo dos legentes atentos. Alheias a tempos cronológicos tão aleatórios como as badaladas do sino da minha aldeia. Os dias são pautados pelo paradoxo da transparência e distanciamento de Yourcenar sentada à porta do seu exílio, em Mount Desert Island, conversando com Zenão sobre a liberdade que tu transpiras em cada amostra de texto que alinhavas ininterruptamente como o fio de Ariadne.
E o fim alguém terá que escrever por nós. Alguém que sobreviva para além deste tempo.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
terça-feira, 8 de dezembro de 2009
parabéns, SARA!
Tu me foste deusa e lágrima, me implodiste a alma e me adubaste o sorriso. Menina mulher, senhora de um império de afectos, artesã de imagens, bordadeira de palavras e tocadora de harpa. Inventora de sonoridades nas caves da cidade que filmaste de granito. E te é berço d’ouro tanto manoelino quanto junqueiriano. A mim ficou-me o hábito de te segurar a mão, como quem te puxa para a vida, dias e dias de chuva gelada, num percurso penoso de uma casa vazia para um hospital onde só tu existias. Me existias. Me não podias abandonar, ainda que eu tivesse que oferecer-te a minha vida. Era um milagre, o que eu queria. Mas foi uma vontade partilhada sem palavras que me ajudou a trazer-te para o lado de cá.
E agora, é apenas um hábito, é apenas uma maneira de dizer que te amo. Porque tu caminhas como quem sabe que o chão é escorregadio, que as esquinas podem atraiçoar, que o percurso não é a direito. E o teu sorriso largo espalha a doçura de quem ama os velhos e as crianças, os sem abrigo e os esfomeados, os livros e os gatos. Caminhas fazendo o caminho. Teu: com quem tu amas e vive em ti. Sobrevive em ti.
Por isso, hoje, em oração mais uma vez, te lego o testemunho da vida.
Po
domingo, 6 de dezembro de 2009
ressaca
Fotografia de Julia Margaret Cameron, 1867
1.2.
cada dia que passa
retiro uma palavra
do meu léxico
ideal.
o que eu escrevo
serve apenas
para fingir
que há um mundo
à minha volta.
3.
snifo as palavras
com a cegueira de
quem apenas
sobrevive.
4.
por muitos aditivos
que me sustenham
nenhum tem o poder
de me reduzir
a um bilhete de comboio
que rasgaste numa estação
do Oriente.