segunda-feira, 6 de abril de 2009

os livros de uma vida

Foto de Marie



transformou a sua vida numa pauta atonal. fechou portas e janelas e deixou morrer as plantas antes viçosas de libido. a luz que passava estreita nas frinchas das paredes levantava o pó pelas cortinas de brocado e o resultado era uma imensa tela esfaqueada que lhe cegava os olhos durante o dia.
à noite todos os gatos eram pardos e por isso os candeeiros iluminavam apenas os passos que dava, quando os dava, ou o cigarro amadurecido no canto da boca.
de longe a longe, pegava cuidadosamente no braço do gira-discos, e bebia um gole de cognac, enquanto a música se espalhava, cansada, pelos cantos da casa. o frenesim só palpitava nos livros desleixadamente amontoados pelo chão e pela mesa, misturados com cadernos rabiscados de anotações minuciosas sobre cada autor que relia com este novo olhar de velha muito velha. o tempo era inexorável e toda a rapidez era pouca para conseguir transformar uma vida de leitora diletante numa figura durasiana. não havia ninguém para lhe perguntar qual o propósito desta tarefa tão ridiculamente prometeica, mas se houvesse creio que não teria resposta, ou então seria convidado a sentar-se, em silêncio total, no sofá coçado que estava sempre na penumbra.
no bairro corria o boato de que ela enlouquecera definitivamente e pouco se preocupavam em verificar se os poucos movimentos mais ou menos quotidianos marcavam o ponto à hora certa.
foi assim que o padeiro, ao fim de uma semana, estranhou a constante sobra de pão e depois de muito pensar se lembrou de ir bater à porta da D. Virgínia.
efectuados todos os procedimentos habituais nestas circunstâncias não se conseguiu apurar a causa de morte e rapidamente foi esquecida porque não se lhe conheciam relações pessoais.
apenas eu sei que a D. Virgínia desistiu, simplesmente, de respirar, porque os seus olhos a traíram, ainda longe do fim da tarefa de releitura dos livros da sua vida.





13 comentários:

Gabriela Rocha Martins disse...

abençoada febre que te leva a escrever

assim

( amiga da onça ,como só eu!!!! )

.
um beijo ,miúda:)))))))))))))

Susn F. disse...

Uma tarefa infindável, ao contrário da vida.

Beijos ângela

Anónimo disse...

nunca tinha questionado se seria possível morrer a ler, e creio que depois do que aqui escreveste, me parece uma forma completa :) beijo

Gabriela Rocha Martins disse...

regressei

tal como a Dª Virgínia
por necessidade
absoluta
de re ler
.te


.
um beijo provocatório

Isabel disse...

do sul.....beijo.

Gabriela Rocha Martins disse...

emprestas.me os teus lápis de cor?
vá!
não sejas mazinha ,please:)))))))))


.
um beijo

maria josé quintela disse...

também gosto de cognac e de livros
e de música e de duras....


beijo Â.

Graça disse...

Já li várias vezes e gosto sempre... quando vou comentar, fico sem net... estou no meio do monte, Ângela, no coração do Alto Minho.

Beijo

tchi disse...

E o maior livro é a D.ª Virgínia. Terá-lo-à levado consigo e, quiçá, só tu o tenhas lido com a tua sensibilidade para além do comum.

Beijinhos.

Boa Páscoa.

Unknown disse...

Quero agradecer a um/a anónimo/a que teve a gentileza de me chamar a atenção para duas gralhas...uma delas vergonhosamente parecia um erro. Pediu-me que não publicasse e respeito, mas faço questão de o assinalar aqui. OBRIGADA.

bettips disse...

Deixou que o musgo das palavras a adormecesse.
Tão verdadeiro e pungente este teu contar.
Bj

rokerhunter disse...

Informo que está sob vigilância atenta do ROQUERHUNTER.

Gabriela Rocha Martins disse...

não parto os lápis ,mas se os aparar até aos cotos ,zangas.te comigo?

( eu dou.te um cromo p'rá troca ,tá bem? )


.
um beijo

FEMINISTIZA_TE

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