lenta hesitação entre
teclas pesadas frias
e o calor da pena ou
da caneta vagarosa
desenhando letras
no mata-borrão
que se juntam em sílabas
palavras esvoaçantes
lançadas à sorte
de marinheiros do passado
e imigrantes do presente.
(a noite fazia gelo e a conversa
aquecia com a erva misturada)
outros olhos a falarem de cá
os mesmos a falarem de lá
uma corrente de vozes atentas
dispersas entre Berlim e o Porto
Veneza agonizante de espelhos
edipianos de uma culpa
informe. o artista incendiou
a própria casa apenas para
poderes contar-me a história
e eu vagueio em amesterdão
ao som de um saxofone
porque me repugnam
os cetins e toda a sorte
de beleza que paira nos céus.
os meus sonhos
têm raízes nas fossas de
Paris e nas peixeiras de Cesário
a minha caneta escreve com sangue
das feridas do Kosovo
e as minhas insónias
são delimitadas com arame
farpado a cheirar a judeus:
preciso, ainda hoje,
de me inclinar sobre
os esqueletos putrefactos
para ter a certeza de
que não vim ao engano
passear airosa sobre um jardim
édénico inventado
antes do Verbo.
eu não consigo ver rosas
onde a lama escorrega
impunemente.
4 comentários:
Ângela... magnífico!
"eu não consigo ver rosas
onde a lama escorrega
impunemente."
Admiro-te nas palavras com que olhas...
Feliz Natal, porque é tempo de o dizer.
Beijo meu.
"avec le temp......"
tudo se vai?
mas fica o tempo de poeirar o que não sendo__________foi.
ficam as tuas palavras....ficam!
edénicas? proféticas.
beijo....!
Ângela, magnífica selecção musical! Magnífica!
Diria o mesmo do seu texto, não fora, por questões ideológicas (limitação minha, reconheço), lhe sentir a falta dos mouros, índios, negros e outros «bárbaros» trespassados em nome desse deus que insiste em nascer todos os anos. E o sangue da Palestina. E o sangue de quem teve o azar de nascer numa terra onde há petróleo...
Partilho, consigo, a impossibilidade de ver rosas hoje, mas não desisti de acreditar na sua possibilidade no futuro. Por isso, ainda que eu não as chegue a ver, continuo deitando o fertilizante que consigo arranjar, vou lavrando a terra... e tento reciclar as ervas daninhas - afinal, também são criaturas...
... e viver dói.
No entanto, continuamos. Mastigando a nossa insatisfação, continuamos.
Beijo.
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